João Neto: O velho par de botas

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Aquele final de dezembro estava radiante, o dia calmo, bonito e o sol ainda nem tinha se escondido atrás dos vagões da Fepasa.
Pensa num dia produtivo: engraxei 8 pares de sapatos (16 cruzeiros, uhuuuu!), já me aprontava pra ir embora... Eis que chega um senhor alto, de meia idade e chapeludo:

- Quanto fica pra engraxar as botas?

- Cinco cruzeiros. Respondi!

- Mas estou com pressa, vou pegar o trem pra Epitácio, tem que ser rápido!

- Com pressa não dá, vai uns 40 minutos!

- Então mete o pau, senão eu perco o trem!

Tive que agilizar, mesmo assim ficou bom o serviço, aliás muito bom!

O sujeito exclama:

- Ficou meio matado seu serviço, tem troco pra 50 cruzeiros?

- Não tenho, mas eu troco ali no Bar Marabá!

- Negativo, tô atrasado.... Quando eu voltar de São Paulo eu te pago! Tirou 2 cruzeiros do bolso, jogou no chão e saiu esbravejando:

- Ficou matado, 2 cruzeiros tá bem pago e se reclamar eu acerto seu passo... Ganhou a plataforma de embarque e entrou no trem que ia pra Epitácio.

Me bateu um desânimo e uma impotência que, naquele momento, decidi que eu não iria mais engraxar!

Tive medo daquele covarde, mas guardei o acontecido pra mim!

Na manhã seguinte ajeitei uma caixa de madeira, com os 18 cruzeiros comprei duas rodas de velocípede, no ferro velho do Laerte,  e comecei a catar sucatas de metal nos lixos das oficinas da cidade.

Engraxate não mais, porém, o olhar ameaçador daquele ignorante nunca mais saiu de mim!

Eis que, 20 anos depois, na enfermaria da Santa Casa de Ourinhos, em visita ao meu amigo Amauri, em fase terminal por problemas no fígado, ouço o paciente da cama ao lado gritando de dor!

Isto mesmo, o último cliente deste ex-engraxate aqui.

Ele nem me reconheceu, eu jamais o esqueci!

Hora da vingança? Pensei... Eu sabia que um dia o encontraria.
 
Minha mãe costumava dizer que o ódio, esse sentimento abstrato, só faz mal pra gente mesmo.
De tão debilitado, aquele animal, não aguentaria um empurrão!

Ele me olha com olhar de piedade, quase sem forças pra falar, me suplica:

- Chame a enfermeira, estou muito mal.... Acho que vou morrer!

Esqueci a vingança, corri até a sala das enfermeiras e pedi ajuda!

Foi o melhor que fiz, mesmo assim o tal faleceu naquela tarde chuvosa!

Enquanto o Amauri dormia à base de morfina, as enfermeiras recolhiam os pertences do tal Joaquinzão: uma bolsa velha, um chapéu furado e um velho par de botas - precisando de graxa!!

Naquela mesma semana o Amauri foi morar com Deus!

Eu perdoei o covarde chapeludo, mas tenho dúvidas se sua estrada foi a mesma por onde o Amauri Mendes partiu para o céu!