O Choro dos Inocentes

Compartilhe:
Ainda a pouco, madrugada, enfrentando um frio de rachar, na pista de caminhada da avenida, o escuro da noite trocava guarda com o amanhecer... A densa neblina ofuscava os primeiros raios de sol, como se o amanhecer fosse tão somente um procedimento habitual.

Fui lembrar dos tempos de eletricista de concessionária de energia, quando atravessávamos as noites frias devolvendo luz com isonomia, não se importando se o cliente morava no bairro nobre ou num casebre na beira do rio.

Só havia um trabalho que eu não gostava de fazer, aliás, detestava: o corte de luz, procedimento que batizei como “atividade culposa” – sem intenção de cortar.

E não importa se o corte, por falta de pagamento, fosse no bairro pobre, no comércio central ou no condomínio fechado... Nunca dava pra saber, ou deduzir, qual problema o consumidor estava atravessando - talvez a simples falta de dinheiro, doença na família ou outro imprevisto qualquer.

Parafraseando Belchior, eu diria que a vida ao vivo é muito pior.

Executando corte de luz me deparei com verdadeiros dramas familiares e tragédias sociais.

Vocês não fazem ideia o que é chegar numa casinha pobre, em pleno inverno, pra cortar a luz e só encontrar crianças ou idosos... Muitas vezes eles nem sabiam o que estava acontecendo e de repente, por nossa ação a televisão emudecia, o chuveiro esfriava, a luz se apagava. Isso me feria a alma... Sem contar as tentativas de explicação dos inocentes:
- Ah moço, deixa ligada a luz, depois minha mãe paga!
Uma frase dita de tal maneira, que me fazia refletir e perguntar pra Deus se essa era minha missão no mundo: fazer uma criança infeliz!

Confesso que após executar algum corte, me senti profundamente entristecido e cai no choro, o coração da gente tem limites, entendem?

Hoje aposentado, lembro desse tempo e concluo que, apesar dos pesares, cumpri com meus deveres, e nessa manhã, mesmo encoberto pela neblina, subo a avenida assobiando uma canção do Fábio Jr:

"Felicidade brilha no ar
Como uma estrela que não está lá
É uma viagem, doce magia
Uma ilusão que a gente não escolhe
Mas que espera viver um dia..."