João Neto: A carta, o relógio e a Professora de Música

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Quando engraxate, muitas vezes, no quiosque do Luiz na antiga rodoviária ou na Relojoaria Lisboa, ali na Rua São Paulo, eu ficava namorando os relógios na vitrine... Um "Orient" de mostrador verde era meu sonho distante, sim distante, afinal que engraxate conseguiria comprar um objeto tão caro?

Pois bem... 

No final do outubro daquele 1972 meu irmão, Zé Luiz, mandou uma carta para minha mãe, avisou que entraria de férias em novembro e pediu pra avisar que iria me dar seu relógio de presente, ele havia ganho um relógio novo por ter cumprido algumas metas no Bradesco, onde era Chefe de Serviço. 

Nem precisa dizer que depois dessa carta minha ansiedade foi às nuvens, eu nem dormia mais direito, sonhando com aquele Orient de mostrador verde. 

Eis que, no começo de novembro ele apareceu, trouxe presentes pra todos, inclusive um monte de camisetas brancas do Bradesco.

Me entregou o relógio e disse:

- Pega pra você, ele está parado mas é baratinho pra arrumar.

Nem me importei, coloquei o relógio no braço e saí à rua pra exibir meu relógio.

Na segunda-feira corri no Toninho Relojoeiro, ali na Antônio Prado, pra fazer o orçamento do conserto... O Toninho foi categórico:

- Marreco, a máquina do relógio está quebrada, não compensa arrumar, fica em duzentos cruzeiros!

Foi uma grande decepção, nem engraxando duzentos pares de sapato daria pra consertar o presente.

Saí dali arrasado, porém, ainda estava apaixonado por meu relógio do mostrador verde.

Continuei usando, mesmo parado, ia na missa, na matinê de domingo, na escola, etc..

Eu já estava perdendo o amor no relógio quando na aula de música, Professora Elenice, me perguntou a hora:

- Que horas são, João?

- Três e quinze! Inventei.

Um outro aluno retrucou:

- Tá errado, agora são cinco para às quatro!

Meu mundo caiu, que vexame!

Professora Elenice, percebendo minha vergonha, foi até minha carteira, viu que o relógio estava parado, imediatamente exclamou:

- Deixa eu acertar seu relógio, João... Ergueu meu braço, fez de conta que acertou e disse:

- Pronto agora está certo!

Pois é, ela me salvou daquela vergonha... Para o resto da aula eu fiquei olhando para o relógio, com ódio mortal.  

Na saída da aula me apressei, queria dar fim naquele relógio imundo, na esquina do Sesi achei uma pedra grande e taquei no relógio destruindo pra sempre aquela ilusão juvenil.

Nem precisa dizer que nunca mais usei relógio em toda minha vida, nem mesmo quando pude comprar um, com isto, simplesmente excluí de mim essa nefasta lembrança.

Lembrei disso hoje, cinquenta anos depois, justamente no dia em que meu irmão Zé Luiz foi morar com Deus...

Que ele descanse em paz!

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